aros azulados. São lentes grandes que cobrem parcialmente as
sobrancelhas, mas ainda assim é possível perceber o desprezo que
acontece por baixo deles. Além dos olhos, todo o restante do corpo
grita esse desprezo, movendo-se de um lado para o outro da calçada,
enquanto as pessoas passam apressadas pulando as poças d'água deixadas
pela chuva da noite anterior.
Trata-se de uma figura corpulenta, obviamente bem acima do peso normal
e beirando a obesidade com a qual boa parte dos cardiologistas
constroem suas carreiras de sucesso. Em dois ou três passos foi
possível identificar que dentro daquele corpanzil morava uma figura
magra, lânguida e sinuosa querendo sair. Como se todo aquele corpo
fosse apenas uma armadura, impedindo que o corpo de verdade pudesse se
mostrar para o mundo.
Preso dentro de uma calça social preta e camisa cinza-chumbo, com
sapatos baratos com solado de borracha, os óculos de sol com aros
azulados e lentes fumê eram a única coisa que entregava o que a
carapaça roliça escondia. Os óculos mostravam certa irreverência para
tanta formalidade nas vestimentas. Um grito de liberdade em meio a
toda aquela fantasia. E tinha o olhar de desprezo, as passadas de
desprezo, o movimento de desprezo e o cigarro apoiado nos lábios com
uma empáfia única.
Pela maneira com que sorvia a fumaça e retirava o cigarro da boca
enquanto se locomovia era notório que a figura presa dentro de si
queria sair gritando em meio a toda aquela balbúrdia do Centro da
cidade, em meio às poças d'água e mostrar toda a liberdade que não
podia ter. Era prisioneiro dentro daquela figura corpulenta, com
roupas e sapatos baratos e obrigado a se vestir e agir como quem não
era de fato.
A figura era triste. O olhar de desprezo só denotava a enorme tristeza
em ter que fingir para o mundo ser uma pessoa que não era por dentro.
Mas a essência escapava aqui e ali como se não pudesse se conter por
muito tempo e tentasse a todo custo escapar por onde pudesse: pela
boca, orelhas, narinas e os poros. E escapou com a fumaça do cigarro,
os gestos delicados, quase femininos, e os óculos de aros azuis com
lentes fumê.
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