janeiro 20, 2012

Dentro de Mim Mora um Anjo

Ele olha com desprezo por trás das lentes fumê dos óculos de sol de
aros azulados. São lentes grandes que cobrem parcialmente as
sobrancelhas, mas ainda assim é possível perceber o desprezo que
acontece por baixo deles. Além dos olhos, todo o restante do corpo
grita esse desprezo, movendo-se de um lado para o outro da calçada,
enquanto as pessoas passam apressadas pulando as poças d'água deixadas
pela chuva da noite anterior.

Trata-se de uma figura corpulenta, obviamente bem acima do peso normal
e beirando a obesidade com a qual boa parte dos cardiologistas
constroem suas carreiras de sucesso. Em dois ou três passos foi
possível identificar que dentro daquele corpanzil morava uma figura
magra, lânguida e sinuosa querendo sair. Como se todo aquele corpo
fosse apenas uma armadura, impedindo que o corpo de verdade pudesse se
mostrar para o mundo.

Preso dentro de uma calça social preta e camisa cinza-chumbo, com
sapatos baratos com solado de borracha, os óculos de sol com aros
azulados e lentes fumê eram a única coisa que entregava o que a
carapaça roliça escondia. Os óculos mostravam certa irreverência para
tanta formalidade nas vestimentas. Um grito de liberdade em meio a
toda aquela fantasia. E tinha o olhar de desprezo, as passadas de
desprezo, o movimento de desprezo e o cigarro apoiado nos lábios com
uma empáfia única.

Pela maneira com que sorvia a fumaça e retirava o cigarro da boca
enquanto se locomovia era notório que a figura presa dentro de si
queria sair gritando em meio a toda aquela balbúrdia do Centro da
cidade, em meio às poças d'água e mostrar toda a liberdade que não
podia ter. Era prisioneiro dentro daquela figura corpulenta, com
roupas e sapatos baratos e obrigado a se vestir e agir como quem não
era de fato.

A figura era triste. O olhar de desprezo só denotava a enorme tristeza
em ter que fingir para o mundo ser uma pessoa que não era por dentro.
Mas a essência escapava aqui e ali como se não pudesse se conter por
muito tempo e tentasse a todo custo escapar por onde pudesse: pela
boca, orelhas, narinas e os poros. E escapou com a fumaça do cigarro,
os gestos delicados, quase femininos, e os óculos de aros azuis com
lentes fumê.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aqui seu comentário, seu pecado...